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26 de fev. de 2011

Anos 1960: ditadura, música e resistência

APROPUC-SP 27.11.10

Ramon Casas Vilarino





É comum confundir-se Música Popular Brasileira com MPB. A primeira é muito mais ampla. Inclui tudo que é composto e cantado no país. Como sigla, trata-se de um movimento dentro da música popular brasileira. Dessa forma, nem toda música popular brasileira é MPB, mas o oposto é verdadeiro. Foi na década de 1960 que esta última surgiu. Do ponto de vista burguês, a década não começara bem, pois a Revolução Cubana abalara a hegemonia capitalista no continente, apontando uma alternativa à ordem burguesa e ao alinhamento mecânico com os EUA. Ao mesmo tempo, se em 1960 Brasília foi inaugurada, ainda que inacabada, projetando o sonho de um Brasil maior que o litoral e para além do eixo Rio-São Paulo, no ano seguinte a crise provocada pela renúncia de Jânio Quadros e o impedimento da posse de João Goulart arrefeceu esse ânimo, e fez lembrar a instabilidade política, característica de nossa democracia burguesa. Um golpe havia sido evitado em 1954, com o suicídio de Getúlio Vargas, mas a crise de 1961 fortaleceu essa idéia, e a gestação da ruptura institucional foi acelerada para desembocar em 1964. Foi nesse momento, no início dos anos que antecederam a ação golpista de militares e burguesia brasileira, que começou também a se constituir outro movimento na música brasileira, caracterizado exatamente por essas marcas do início da década.

A MPB, desde cedo, procurou acompanhar as mudanças pelas quais o país passava, e suas composições registravam o que outros ritmos não faziam. Para que esse tipo de música aparecesse, a televisão foi indispensável. A TV Excelsior iniciou a "era dos festivais" em 1965, sendo cassada mais tarde. Em novembro de 1968 foi criado o Conselho Superior de Censura e, logo depois, com o A.I. 5, foi instituída a censura prévia à música. Digladiando com o aparato repressor, enquanto este último insistia no esquecimento de temas perturbadores da ordem, a música tratava de lembrá-los. Mesmo quando as metáforas eram proibidas, insistia-se com um arranjo musical que, ao menos, desenhava em sons um pouco do que se queria discutir.

O campo da memória foi palco de disputas, e os palcos onde os músicos se apresentavam constituíram-se em campos de luta. Parafraseando o verso de Taiguara na música "Hoje" - "Hoje trago em meu corpo as marcas do meu tempo" -, a MPB traz em seu corpo as marcas do seu tempo. Tempo esse que a influenciaria para além de versos rebeldes, pois a música, num período de exceção, pode tornar-se uma tomada de posição. Daí a censura, as prisões e os expurgos que caíram sobre os cantores/compositores.

Assim como a história, a memória histórica é construída socialmente, e, naquele momento, tentava-se constituir uma memória segundo os interesses das frações de classe, senão de toda classe burguesa, representadas num Estado autoritário e repressor. Manipulada a memória, a dominação de classes ficaria facilitada, dificultando as novas gerações de reivindicar outro passado.

O que sobrevive, em termos de vestígios históricos, ou fontes, não é absolutamente tudo aquilo que existiu ou foi produzido no passado, mas o resultado de escolhas operadas pelas forças em conflito. Ainda que os historiadores efetuem suas escolhas, é necessário que nesse campo dos registros, onde as lutas de classes também ocorrem, os oprimidos deixem suas marcas. Daí a importância das músicas e de seus autores, que expuseram de que lado estavam nessa arena.

Ainda que pareça uma batalha perdida, a guerra continuava para além dos festivais. Consolidados na música popular brasileira com uma obra que refletia as marcas de sua época, os cantores/compositores ganharam vida própria, aproveitaram a estadia no exterior para lançar internacionalmente suas músicas e carreiras, e, quando voltaram, continuaram a difícil tarefa de gravar suas impressões acerca daquele mundo e dos seus valores.

Talvez toda música devesse embutir essa missão, mas o fato é que, naqueles anos, no Brasil, a MPB se encarregaria disso, e, após o golpe militar, as referências à ditadura, aos desmandos, à desigualdade social e a temas de apelo popular, como reforma agrária, mortalidade infantil entre outros, apareceriam em suas letras e mesmo nos seus arranjos, ora de forma mais explícita, ora de maneira velada, por meio das metáforas que foram tão bem trabalhadas pelos compositores.

Com o A.I. 5, no entanto, os festivais de música definharam. Após a sexta-feira 13 de dezembro de 1968, censura, proibições e exílio tiraram desses palcos todos os que faziam da música um ato político, uma tomada de partido, restando aqueles que, se não defendiam explicitamente o regime, pelo menos não se comprometiam com uma mudança por meio de sua arte.

Ramon Casas Vilarino é professor do Depto. de Política da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS), é autor de A MPB em movimento - música, festivais e censura. 5ª. edição. São Paulo, Olho D´Água, 2006

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