BEM VINDO




26 de fev. de 2011

Anos 1960: ditadura, música e resistência

APROPUC-SP 27.11.10

Ramon Casas Vilarino





É comum confundir-se Música Popular Brasileira com MPB. A primeira é muito mais ampla. Inclui tudo que é composto e cantado no país. Como sigla, trata-se de um movimento dentro da música popular brasileira. Dessa forma, nem toda música popular brasileira é MPB, mas o oposto é verdadeiro. Foi na década de 1960 que esta última surgiu. Do ponto de vista burguês, a década não começara bem, pois a Revolução Cubana abalara a hegemonia capitalista no continente, apontando uma alternativa à ordem burguesa e ao alinhamento mecânico com os EUA. Ao mesmo tempo, se em 1960 Brasília foi inaugurada, ainda que inacabada, projetando o sonho de um Brasil maior que o litoral e para além do eixo Rio-São Paulo, no ano seguinte a crise provocada pela renúncia de Jânio Quadros e o impedimento da posse de João Goulart arrefeceu esse ânimo, e fez lembrar a instabilidade política, característica de nossa democracia burguesa. Um golpe havia sido evitado em 1954, com o suicídio de Getúlio Vargas, mas a crise de 1961 fortaleceu essa idéia, e a gestação da ruptura institucional foi acelerada para desembocar em 1964. Foi nesse momento, no início dos anos que antecederam a ação golpista de militares e burguesia brasileira, que começou também a se constituir outro movimento na música brasileira, caracterizado exatamente por essas marcas do início da década.

A MPB, desde cedo, procurou acompanhar as mudanças pelas quais o país passava, e suas composições registravam o que outros ritmos não faziam. Para que esse tipo de música aparecesse, a televisão foi indispensável. A TV Excelsior iniciou a "era dos festivais" em 1965, sendo cassada mais tarde. Em novembro de 1968 foi criado o Conselho Superior de Censura e, logo depois, com o A.I. 5, foi instituída a censura prévia à música. Digladiando com o aparato repressor, enquanto este último insistia no esquecimento de temas perturbadores da ordem, a música tratava de lembrá-los. Mesmo quando as metáforas eram proibidas, insistia-se com um arranjo musical que, ao menos, desenhava em sons um pouco do que se queria discutir.

O campo da memória foi palco de disputas, e os palcos onde os músicos se apresentavam constituíram-se em campos de luta. Parafraseando o verso de Taiguara na música "Hoje" - "Hoje trago em meu corpo as marcas do meu tempo" -, a MPB traz em seu corpo as marcas do seu tempo. Tempo esse que a influenciaria para além de versos rebeldes, pois a música, num período de exceção, pode tornar-se uma tomada de posição. Daí a censura, as prisões e os expurgos que caíram sobre os cantores/compositores.

Assim como a história, a memória histórica é construída socialmente, e, naquele momento, tentava-se constituir uma memória segundo os interesses das frações de classe, senão de toda classe burguesa, representadas num Estado autoritário e repressor. Manipulada a memória, a dominação de classes ficaria facilitada, dificultando as novas gerações de reivindicar outro passado.

O que sobrevive, em termos de vestígios históricos, ou fontes, não é absolutamente tudo aquilo que existiu ou foi produzido no passado, mas o resultado de escolhas operadas pelas forças em conflito. Ainda que os historiadores efetuem suas escolhas, é necessário que nesse campo dos registros, onde as lutas de classes também ocorrem, os oprimidos deixem suas marcas. Daí a importância das músicas e de seus autores, que expuseram de que lado estavam nessa arena.

Ainda que pareça uma batalha perdida, a guerra continuava para além dos festivais. Consolidados na música popular brasileira com uma obra que refletia as marcas de sua época, os cantores/compositores ganharam vida própria, aproveitaram a estadia no exterior para lançar internacionalmente suas músicas e carreiras, e, quando voltaram, continuaram a difícil tarefa de gravar suas impressões acerca daquele mundo e dos seus valores.

Talvez toda música devesse embutir essa missão, mas o fato é que, naqueles anos, no Brasil, a MPB se encarregaria disso, e, após o golpe militar, as referências à ditadura, aos desmandos, à desigualdade social e a temas de apelo popular, como reforma agrária, mortalidade infantil entre outros, apareceriam em suas letras e mesmo nos seus arranjos, ora de forma mais explícita, ora de maneira velada, por meio das metáforas que foram tão bem trabalhadas pelos compositores.

Com o A.I. 5, no entanto, os festivais de música definharam. Após a sexta-feira 13 de dezembro de 1968, censura, proibições e exílio tiraram desses palcos todos os que faziam da música um ato político, uma tomada de partido, restando aqueles que, se não defendiam explicitamente o regime, pelo menos não se comprometiam com uma mudança por meio de sua arte.

Ramon Casas Vilarino é professor do Depto. de Política da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS), é autor de A MPB em movimento - música, festivais e censura. 5ª. edição. São Paulo, Olho D´Água, 2006
Lutas Sociais 15/16
NEILS (Núcleo de Estudos de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais)



contato: Joana Coutinho e Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida




Apresentação



Ao comemorar seus dez anos de existência, Lutas Sociais, mantendo sua pesquisa crítica de excelente qualidade, aposta em jovens autores. Assim, no conteúdo e no jeito de produzir a revista, mantemos os objetivos definidos em 1996. Este é nosso maior motivo para uma satisfação que compartilhamos com os leitores.

O panorama brasileiro e internacional continua a apresentar motivos para otimismo e preocupação.

Na América Latina, a eleição de Evo Morales elevou para um novo patamar as lutas nas quais se articulam semiproletários e indígenas do subcontinente e a polarização eleitoral no México, onde Felipe Calderón foi declarado vencedor com uma ínfima e suspeita vantagem numérica, expõe as fragilidades de um sistema político que, por sete décadas pareceu irremovível e, de quebra, aumenta a autoridade do EZLN que, à revelia da maior parte da intelectualidade de esquerda, manteve, no essencial, suas críticas às limitações da candidatura que se apresentou como porta-voz dos dominados, mas foi, no mínimo, tacanha no atendimento às aspirações dos que efetivamente lutam para mudar o mundo. Outra grande novidade para este início de milênio, surgiu no Oriente Médio: a resistência política de massa à política genocida do Estado de Israel (diretamente financiado pelos Estados Unidos) se revelou extremamente eficaz no plano político-militar, colocando em xeque a estratégia da "única potência verdadeiramente global" para o Oriente Médio. Dissipou-se a ilusão da "guerra video game" e se evidenciou, neste começou de século XXI, a importância decisiva da participação das massas no enfrentamento de adversários armados até os dentes. Por outro lado, o fracasso estratégico dos EUA pode levar o candidato a império a jogar suas fichas numa guerra contra o Irã, com imprevisíveis conseqüências para toda a humanidade.

Contribuir para uma solução civilizatória do conflito no Oriente Médio passa pela rejeição dos fundamentalismos em choque, o que supõe o desvelamento das pretensões do imperialismo estadunidense na região; pela crítica teórica à tese do choque de civilizações; e pela aposta na capacidade da ação organizada de massas no sentido da autodeterminação de todos os povos que vivem por lá. Isso implicará profundas transformações sociopolíticas. Artigos a este respeito são bem-vindos.

Da mesma forma, as manifestações de massa na França contra a discriminação que, no início, foi apresentada como simplesmente racista (o que não é pouco), mas logo se revelou intimamente conectada com o processo de acumulação capitalista no plano transnacional, apresenta novas potencialidades de luta internacionalista, o que, aliás, também se revela nas resistências aos chamados processos de "reestruturação produtiva" (capitalista) que se desenrolam na indústria automobilística e cujas seqüelas apenas começam a se tornar visíveis.

No plano político brasileiro, apesar dos progressos realizados, deve-se, mais do que nunca, fugir da auto-ilusão. Iniciou-se a organização de uma nova frente de esquerda, o que é de importância inestimável. Mas suas limitações não somente numéricas, mas, sobretudo, no que se refere à elaboração do programa e às formas de lutar por ele, são imensas. Um balanço da participação das esquerdas neste processo eleitoral será indispensável para o avanço das lutas sociais no país e na América Latina.

O dossiê deste número de Lutas Sociais, O governo Lula em questão, já é parte desse balanço, com uma série de textos que necessariamente suscitarão o reexame de tudo o que se escreveu sobre o Partido dos Trabalhadores até o início da gestão presidencial de Luís Inácio Lula da Silva. Jair Pinheiro aborda as redefinições da cena política e o papel que nela desempenha o PT. Maria Izabel Lagoa, ao examinar o mesmo partido, privilegia o ângulo de sua profunda crise. Rudá Ricci centra o foco em um processo político até então pouquíssimo estudado: o lulismo. Enfim, Carla Silva aborda as relações do governo Lula com os dominantes, a começar por um importante meio de comunicação, e, no sentido inverso, Renata Gonçalves examina a política do mesmo governo frente aos dominados, centrando o foco no mais importante movimento social brasileiro, o MST.

Forte atenção continua sendo dispensada às atuais configurações que adquire o contraditório processo de espraiamento do capitalismo pelo mundo. Publicamos a segunda parte do texto de David Harvey, "Acumulação por desapossamento" e o instigante contraponto de autoria de um jovem autor, Cristiano Monteiro da Silva, "Acumulação por centralização: novos traços da fase imperialista na América Latina". Antonio Carlos Moraes discorre sobre a crise do capitalismo e Carlos Eduardo Martins analisa os impactos desta crise sobre as relações internacionais. Rodrigo Castelo Branco aborda as relações entre o NAFTA (Tratado de Livre-Comércio da América do Norte) e a barreira erguida contra trabalhadores dos países periféricos. Revisitando os anos JK, Lúcio Flávio de Almeida examina as potencialidades das lutas antiimperalistas na América Latina contemporânea.

Apesar dos esforços dos ideólogos a serviço da ordem, o capitalismo não se define fundamentalmente por relações de mercado, mas de exploração e dominação de classe. Publicamos "Taylorismos, fordismos e toyotismos: as relações técnicas e sociais de produção configurando reestruturações produtivas", de Célia Congílio Borges, e "Tempo de trabalho e desemprego", de Giuseppina De Grazia. Não somente a produção mais estritamente econômica é socialmente determinada e, mantendo nossa preocupação com os vínculos entre cultura e relações sociais, Daniela Palma estuda a fotografia operária na República de Weimar e Celso Uemori nos apresenta mais um resultado de sua pesquisa em curso sobre a obra de Manoel Bomfim.

Nas quatro resenhas que encerram este número estão presentes algumas das preocupações centrais que impulsionam esta revista ao longo destes dez anos: lutas dos trabalhadores em todo o mundo; questões nacionais e (anti)imperialismo; reprodução e questionamentos ideológicos das relações de dominação.

A revista já estava concluída quando soubemos da morte de Charles Bettelheim. A ele dedicamos este número de Lutas Sociais e agendamos para o próximo o exame de suas contribuições teóricas para a análise do capitalismo e das tentativas de transição para o socialismo. Trata-se de um patrimônio do pensamento crítico à espera de urgente atualização neste início de século tão rico de novos desafios a serem urgentemente enfrentados.

L.F.R.A



SUMÁRIO
Apresentação, 7
ARTIGOS
Acumulação por centralização: novos traços da fase imperialista na América Latina
Cristiano Monteiro da Silva, 10
O “novo imperialismo”: acumulação por desapossamento (Parte II)

David Harvey, 21
A crise do capitalismo mundial e as potências emergentes

Carlos Eduardo Martins, 35
Capitalismo moribundo

Antonio Carlos de Moraes, 40
Mal-estar da democracia na América Latina: lutas e resistências hoje

Eliel Machado, 54
Globalização, Tratado de Livre-comércio da América do Norte e migração internacional: o capital como barreira aos trabalhadores periféricos

Rodrigo Castelo Branco, 65
Não comprar gato por lebre – por um reexame da relação entre nacionalismo e antiimperialismo nos anos JK

Lúcio Flávio de Almeida, 77
Taylorismos, fordismos e toyotismos: as relações técnicas e sociais de produção configurando reestruturações produtivas

Célia Congílio Borges, 91
Tempo de trabalho e desemprego

Giuseppina De Grazia, 101
Um olhar de classe: a experiência da fotografia operária na Alemanha de Weimar

Daniela Palma, 114
A identidade do intelectual e o estatuto da obra e o seu contexto

Celso Noboru Uemori, 123
DOSSIÊ: GOVERNO LULA EM QUESTÃO

Veja e o PT: do “risco Lula” ao “Lula light”

Carla Luciana Silva, 137
Uma cena decepcionante

Jair Pinheiro, 149
Considerações acerca da crise política do Partido dos Trabalhadores

Maria Izabel Lagoa, 161
Lulismo: três discursos e um estilo
Rudá Ricci, 171
Assentamentos como pactos de (des)interesses nos governos democráticos

Renata Gonçalves, 184

LIVROS

Uma ilusão de desenvolvimento – nacionalismo e dominação burguesa nos anos JK de Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida por Ramon Casas Vilarino, 197
Forças do Trabalho: movimento de trabalhadores e globalização desde 1870 de Beverly Silver por Merilyn Escobar de Oliveira, 200

Universidade: a democracia ameaçada de W. Rampinelli, V. Alvim e G. Rodrigues (orgs) por Marli Auras, 203

Discriminação e desigualdades raciais no Brasil de Carlos Hasenbalg por Washington Santos Nascimento, 206

Revés do Avesso: Política, Cultura, Ecumenismo, n° 4-5, por John Kennedy Ferreira, 209

ABSTRACTS, 213

NORMAS PARA COLABORAÇÃO, 216
Para entender o Oriente Médio… tente algumas leituras

19/03/2010
Tradução: Caia Fittipaldi



A maior dificuldade para escrever com consciência histórica é que a história não terminou. Seja como for, se quiser entender a Al-Qaeda, por exemplo, tente o parágrafo seguinte:



“O homem do deserto não merece crédito por sua fé (…). Ele alcançou essa intensa condensação de si mesmo em Deus porque fechou os olhos ao mundo e a todas as complexas possibilidades latentes nele, que só o contato com a riqueza e as tentações pode trazer à tona. Alcançou uma fé confiável e poderosa, mas em campo tão estreito! Sua experiência estéril roubou-lhe qualquer compaixão e perverteu sua generosidade humana para com a imagem da perda na qual se escondeu (…). Vem daí um gozo na dor, uma crueldade que vale mais para ele que quaisquer bens. (…) Encontrou luxúria na abnegação, na renúncia, na autocontenção. Fez a nudez da mente tão sensual quanto a nudez do corpo. É possível que tenha salvo a própria alma, e sem risco, mas num duro egoísmo.”



É de T.E. Lawrence, em Seven Pillars of Wisdom: a Triumph (1926) [Os Sete Pilares da Sabedoria: Um Triunfo, Rio de Janeiro: Record, trad. C. Machado] – e que perfeição! Sempre lembro dessa passagem quando assisto aos videoteipes de Bin Laden. O campo estreito. A abnegação. A crueldade. Não concordo necessariamente com Lawrence, mas em trechos como esse, percebo-me refletindo cada vez mais profunda e intensamente sobre suas palavras.



Digo isso porque, várias vezes por ano, leitores do Independent pedem-me que sugira “uma lista de leituras” de livros em inglês sobre o Oriente Médio. Não é fácil. A maior dificuldade para escrever com consciência histórica sobre o Oriente Médio é que a história não terminou. A guerra continua. Os dois “lados” – de fato há muitos, muitos lados – produzem narrativas conflitivas. E não aceito a ideia de que se possa oferecer uma lista equilibrada de livros. Há a versão de Israel. Há a versão dos árabes. Há a versão alucinada dos norte-americanos etc. O Oriente Médio é questão de injustiça. Quem contará melhor a história?



No que tenha a ver com a disputa árabes-israelenses, os dois incomparavelmente melhores livros são The Arab Awakening: the history of the Arab National Movement (Londres, 1938) de George Antonius, e The Gun and the Olive Branch (1977), de meu colega e amigo David Hirst. Antonius escreveu em 1938; Hitler já estava no poder há cinco anos – mas dez anos antes de os palestinos serem ativamente assaltados. – E escreveu que:



“O tratamento imposto aos judeus na Alemanha e em outros países europeus é uma desgraça para os autores e para a civilização moderna. A posteridade não perdoará nenhum país que não assuma a sua parcela de sacrifícios para aliviar o sofrimento e o desespero dos judeus. Impor toda a carga à Palestina árabe é miserável movimento de fuga ao cumprimento do dever moral que cabe a todo o mundo civilizado, além de ser moralmente vergonhoso. Nenhum código moral pode justificar a perseguição de um povo, como meio para aliviar a perseguição de outro. A cura para a expulsão dos judeus da Alemanha jamais será a expulsão dos árabes, de sua própria terra (…).”



Foi o primeiro sinal verdadeiramente eloquente do que estava para acontecer, e Hirst completou a narrativa das muito acuradas predições de Antonius, o primeiro autor, parece-me, a enfrentar o romance-lixo Exodus, com o qual Leon Uris agraciou o Estado judeu – para deleite de Ben Gurion, embora devesse ter pensado melhor –, ao desconstruir o “terrorismo”, sem romantizar os refugiados palestinos e seus movimentos de resistência.



Nesse mesmo contexto, deve-se lembrar o trabalho dos “novos historiadores” de Israel, que criaram uma narrativa complementar. Benny Morris foi o mais proeminente pesquisador israelense a provar que foi intenção de Israel expulsar os palestinos e arrancá-los de suas casas às dezenas de milhares em 1948. O fato de que, depois, Morris não tenha feito outra coisa além de reclamar que a limpeza étnica não tenha sido suficientemente eficaz e ampla não diminui a importância de seu trabalho anterior, seminal.



Dizem que F. R. Leavis, certa vez, iniciou um parágrafo com “Como qualquer leitor-que-preste de poesia sabe…”. Então, acho que podemos dizer que “qualquer leitor-que-preste” de livros sobre o Oriente Médio deve ler Edward Said. Um de seus melhores livros, aliás, é sobre música. Mas Orientalism [Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2003] sempre será necessário em qualquer lista. Said fez filosoficamente e historicamente, pela narrativa do Oriente Médio, o que Antonius fez politicamente. Não estou subestimando o trabalho político de Said – embora vários críticos tenham anotado que Said talvez não tenha levado n a devida consideração a vasta literatura “orientalista” que brotou na Itália, na Alemanha e na Rússia. Mas não o estou condenando como o condenaram Al Dershowitz e sua gangue.



A União Soviética, claro, sempre teve problemas com o Profeta, porque Maomé foi comerciante e burguês. Jesus Cristo, pelo menos, nasceu em família de trabalhador, embora não se saiba se José, carpinteiro, possa ser dito Stakhanovita recomendável. Mas devo dizer que o fato de Maria e José terem tido de viajar até Jerusalém para pagar impostos é absolutamente otomano, de tão burocrático. E que nenhum hotel aceitasse hospedar uma mulher grávida, sim, tem sabor de Oriente Médio. Mas, não, não! Não vá eu, agora, virar “orientalista”!



E há também esse brilhante pensador e jornalista libanês, o saudoso Samir Kassir – muito saudoso, porque foi assassinado há quase cinco anos, e a última coisa que vi dele foi o sangue ao lado do carro explodido – cuja monumental história de Beirute, em inglês, estará nas livrarias esse ano (admito: estou escrevendo o prefácio).



Tudo que você algum dia quis saber sobre Beirute – e muito, receio, que você preferiria jamais saber – está no livro de Kassir. Ele lembra como, há cem anos, um jovem capo di capo cristão – um Costa Paoli – tinha o hábito de beijar o rosto dos cristãos libaneses recém assassinados, antes de que fossem sepultados. Era homem elegante – “uma rosa na lapela e lenço perfumado no bolso do paletó”, segundo o professor Edward Atiyah –, e um gângster; vingava-se dos muçulmanos. Naqueles dias, havia milícias e grupos armados de apoio às comunidades cristãs e muçulmanas, e às vezes, havia briga de rua.



Exatamente como o meu colega David McKittrick descobriu que, na Belfast do século 19, as primeiras lutas de rua ocorreram nos mesmos locais onde aconteceram as batalhas dos anos 70s, assim também já se sabe que, na Beirute do século 19, os conflitos entre as milícias armadas aconteceram nos mesmos locais onde eclodiria a Guerra do Líbano de 1975.



Kassir é o primeiro autor cujo único personagem humano é uma cidade, em cuja bela e terrível história vêem os homenzinhos girando em rodas de tortura. Eu não sabia que o subúrbio onde reina o Hizbollah, Ouzai, recebeu esse nome para homenagear o velho divino Imã Ouzai; ou que o Partido Social Nacionalista Sírio – uma tediosa sociedade pan-árabe – inspirou-se, para criar sua bandeira vermelha, branca e preta (com penas cruzadas), nos nazistas; ou que o palavrão (em árabe) sharmut ou

sharmuta – “puta” – e que hoje se usa a torto e a direito, surgiu da tão mais gentil e suave “charmante”, francesa. Lawrence e demais autores, por favor, anotem.



Texto publicado no The Independent, Londres, em 13 de março de 2010.

politica.

Professores condenam o ataque à Universidade Islâmica de Gaza

05/01/2009

Enquanto a carnificina causada pelo ataque israelense à Faixa de Gaza nos enche de horror, tristeza e indignação, um fato nos obriga a nos manifestar: a destruição da Universidade Islâmica de Gaza. Assim como as universidades católicas e pontifícias em todo o mundo, a Universidade de Gaza é uma instituição dedicada ao ensino e à pesquisa acadêmica. Devido à negação ao acesso e compartimentação da vida nos territórios palestinos, a Universidade Islâmica tornou-se ainda mais importante para a população jovem de Gaza, impedida de cursar faculdades na Cisjordânia, em Israel ou no exterior, inclusive quando são aceitos como bolsistas. A Universidade atende mais de 20.000 estudantes, 60% dos quais são mulheres. Formada por 10 faculdades, oferece cursos de graduação e pós-graduação em educação, religião, arte, comércio, charia, direito, engenharias, ciências, medicina e enfermagem. Usa-se o mesmo sofisma com o qual se ataca o povo de Gaza: os estudantes e os professores da Universidade seriam do Hamas, o mesmo pretexto dos regimes fascistas para decretar a morte da cultura. O que querem é a morte da memória, da história, da identidade do povo palestino. Condenamos toda violência e lamentamos cada morte, seja em Israel, seja nos territórios palestinos ocupados ilegalmente por Israel. Mas não podemos aceitar calados que seja lançado literalmente aos escombros o direito à educação, à dignidade, à vida nessa pequena faixa de terra onde há décadas a população vive na mais absoluta negação. Ao atacar o direito à educação e à cultura em Gaza, coloca-se à prova a educação e a cultura mundiais.

II Simpósio Lutas Sociais na América Latina

"Crise das democracias latino-americanas: dilemas e contradições"





Em linhas gerais, o Simpósio pretende discutir os dilemas e contradições dos regimes democráticos latino-americanos sob a "onda neoliberal" que teima em permanecer hegemônica em praticamente todo o subcontinente. A hegemonia neoliberal não tem significado ausência de lutas e resistências das classes populares. Ao contrário, nos últimos anos, a América Latina tem se transformado num verdadeiro caldeirão de revoltas, bloqueios de estradas, derrubada de governos, manifestações massivas contra o projeto neoliberal etc. O século XXI nos instiga a pensar a contra-hegemonia popular latino-americana.


América Latina hoje: difícil conciliação entre neoliberalismo e democracia



Parece cada vez mais difícil conciliar regime democrático com neoliberalismo, pelo menos nas atuais condições econômicas e sociais da América Latina. O que não quer dizer que não seja possível. Entretanto, como se tem observado, as políticas neoliberais têm apontado, cada vez mais, para uma concentração e centralização do capital em praticamente todos os países da região. Têm significado a piora das condições de vida de milhões de pessoas, o aumento da violência horizontal e dos índices de desemprego. Presenciamos, com frequência, as classes populares, através dos seus diversos movimentos sócio-políticos, recorrerem a ações extra-parlamentares para conseguir do Estado suas reivindicações. As democracias latino-americanas tornaram-se meramente eleitorais, despojadas de qualquer possibilidade de conquista de novos direitos sociais. Ao contrário, têm significado a retirada de direitos. Esses momentos parecem apontar para o "esgotamento" dos mecanismos eleitorais, uma vez que os governos eleitos têm se comprometido, em grande medida, com os interesses do capital financeiro internacional e seus aliados locais. Mas não é só: vários dos governos eleitos têm se envolvido em escândalos de corrupção, o que demonstra, para amplos setores da população, os limites dos regimes democráticos nos países de capitalismo dependente. Não é por outro motivo que a conciliação entre neoliberalismo e democracia tem se tornado cada mais difícil em países como a Bolívia, Argentina, Colômbia, Venezuela, Peru, Equador, México, Brasil etc. Instigado por estas e outras questões relevantes, o GEPAL propõe a realização do II Simpósio Estadual Lutas Sociais na América Latina, cujo tema será "Crise das democracias latino-americanas: dilemas e contradições".
A derrocada dos Festivais

em 22/10/2007



Com a imposição do Ato Institucional n° 5, seus efeitos fizeram-se sentir na sociedade como um todo. As expressões culturais em geral, e a música em particular, já eram vistas como espaços possíveis de resistência e subversão. O IV Festival de MPB da TV Record mal havia terminado, quase coincidindo com a edição do AI5 e, a 27 de dezembro de 1968, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram detidos em São Paulo, em princípio para prestar depoimentos. Numa perua Veraneio, veículo de transporte da polícia, os dois compositores terminaram no Rio de Janeiro no Regimento de Pára-quedistas, de onde só cinco meses depois seriam soltos para, a “conselho” das autoridades, deixarem o país. Do exílio, em Londres, só voltariam quase três anos depois. Para justificar a prisão desses artistas, o DOPS buscou outros indícios para reforçar a medida:



Declarações datadas de 27.11.1969 de Antonio Carlos Martins, argentino, traficante de tóxicos — cocaína. Com referência a Caetano Veloso, consta que é ‘seu cliente’ (Documento 50-Z-9-1 1915. Arquivo do DOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo).



Para além da acusação de subversão, somava-se um depoimento talvez forjado — que permitia enquadrar Caetano Veloso corno um drogado. No arquivo do DOPS, Caetano Veloso freqüentemente é citado como “marginado” (sic), “sem qualificação” e, agora, como viciado em drogas. Se olhássemos friamente essas fichas, sem o conhecimento da obra de Caetano, imaginaríamos outra pessoa, incapaz de criar versos que até hoje, há 30 anos, nos vêm facilmente à memória e remetem ao entendimento de uma época. Mesmo presos, Gil e Caetano tinham livre sua obra, que mesmo em outras vozes ousavam desafiar:



Informe n. 42 datado de 17.2.1969 da 4a. Zona Aérea, constando que no programa de televisão “Vida Paixão e Banana do Tropicalismo”, havia alguns pontos discutidos e recusados pelos patrocinadores pelo seu conteúdo agressivo, fora de lugar, num programa que deveria ter sido um musical. Entre os tópicos cortados, consta a parte musical de números como “Tropicália’, de Caetano Veloso, onde inclusive constam no arranjo, algumas notas do hino internacional comunista etc. (Documento 50-D-26-787. Arquivo do DOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo).



A música Sabiá, referia-se ao exílio de intelectuais e políticos de oposição e que logo atingiria os compositores da MPB. Geraldo Vandré, que fora para o Chile, Chico Buarque, para a Itália e Edu Lobo para os EUA, comporiam o time de artistas “convidados” ao retiro. Ainda que o exílio significasse, para quem o impôs, urna forma de afastar alguma voz incômoda, a ausência desses compositores era lamentada por parte do público, como na carta de uma leitora do semanário Pasquim:



Tendo acabado de ler o número 12 desse precioso informativo, tomo da máquina de escrever para rogar-lhes responder-me, com urgência urgentíssima, uma questão de suma e vital importância: Cadê o Chico Buarque? Sem ele, o PASQUIM não é PASQUIM, e sim pasquim. Assim como, sem ele, onde está a música? Só tem dado música por aí. Talvez possam os senhores (podem acrescentar um ‘digno’ antes dos senhores, não vou cobrar) também informar se e quando Chico está por estas bandas (juro que não foi intencional) ou, pelo menos, quando é que vou ficar de novo grudada na vitrola, sentindo todas as poesias que ele se dá ao luxo de musicar. Quando é que vamos ter mais Chico? Chico é poesia e sem poesia a vida é muito chata (Carta enviada pela leitora Adélia Cruz, de São Paulo, capital, para o Pasquim, n. 13, setembro de 1969, p. 16).



Se a presença desses autores incomodava pelo movimento de reflexão que proporcionavam, a ausência deles não cessava esse movimento. Os compositores e intérpretes que aqui ficaram não gozaram de melhor sorte, pois o cerco da censura sobre suas composições crescia e era quase impossível o trabalho autônomo, sem a interferência da censura. Os festivais organizados a partir de 1969, sem a presença daqueles compositores consagrados, sentiram os efeitos daquela “diáspora” e da repressão. A ausência daqueles abre espaço para novos compositores, mas o contexto político-ideológico contribuiu para o aparecimento de canções que destoavam das que, até então, marcaram indelevelmente os festivais. A exceção, talvez um último suspiro da MPB nos festivais, tenha sido a música Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, vencedora do V Festival de MPB da Record:



Olá, como vai / Eu vou indo e você tudo bem / Tudo bem eu vou indo / Correndo pegar meu lugar / No futuro e você / Tudo bem eu vou indo / Em busca de um sono tranqüilo / Quem sabe / Quanto tempo, pois é quanto tempo / Me perdoe a pressa / E a alma dos nossos negócios / Pois não tem de que / Eu também só ando a cem / Quando é que você telefona / Precisamos nos ver por aí / Pra semana prometo talvez nos vejamos / Quem sabe / Quanto tempo, pois é quanto tempo / Tanta coisa que eu tinha a dizer / Mas eu sumi na poeira das ruas / Eu também tenho algo a dizer / Mas me foge à lembrança / Por favor telefone eu preciso saber / Alguma coisa rapidamente / Pra semana — o sinal / Eu procuro você — vai abrir / Prometo não esqueço / Por favor não esqueça / Não esqueça Adeus — adeus



VIOLA, P. da. Sinal Fechado (LP). Paulinho da Viola. São Paulo: EMI-Odeon (31C 052422023), s/d.



As outras músicas classificadas no mesmo festival já não traziam qualquer denúncia mais explícita sobre a realidade da época. Vejamos a letra de outra vencedora, Cantiga por Luciana, de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, interpretada pela estreante Evinha, que venceu o IV Festival Internacional da Canção, da TV Globo, em 1969:



Manhã / No peito de um cantor / Cansado de esperar só / Foi tanto tempo que nem sei / Das tardes tão vazias / Onde andei / Luciana, Luciana / Sorriso de menina / Dos olhos de mar / Luciana, Luciana / Abrace essa cantiga / Por onde passar / Nasceu / Na paz de um beija-flor / Um verso em voz de amor / Já desponta os olhos da manhã / Pedaços de uma vida / Que abriu-se em flor / Luciana, Luciana (…)



(*) SOUTO, E. e TAPAJÓS, P. As canções que lembram você (LP). Evinha. São Paulo: EMI-Odeon (60560088), s/d.



Músicas como esta, certamente não se destacariam naquele ano se não fosse o cerco imposto à MPB. Havia música popular brasileira, mas a MPB, sigla que designava uma música propiciadora de reflexão e portadora de uma postura crítica, migraria para espaços menos privilegiados, nos interstícios do sistema, naquilo que Gilberto Vasconcelos designou de “frestas”.



Em Sinal Fechado, o autor já colocava em dúvida o possível reencontro com os compositores que se foram: “Quando é que você telefona / Precisamos nos ver por aí / Pra semana prometo talvez nos vejamos / Quem sabe …“. O futuro era incerto e, por enquanto, havia obstáculos para se dizer, a afasia imperava na música: “Tanta coisa que eu tinha a dizer (…)“.



Enquanto a MPB se mantinha na intenção, esse espaço outrora repleto de protestos e denúncias, alguns mais explícitos, ou mesmo poéticos, era preenchido por canções afásicas, destituídas da incipiente tradição constituída nos festivais. Uma tradição que fora construída nas composições, em versos bem trabalhados, no palco, onde a disputa se dava a partir da mensagem crítica e, para além de tudo isso, no público, que se posicionava aplaudindo, vaiando e utilizando o espaço dos festivais para interferir na realidade.



Levamos ao conhecimento dessa Chefia que segundo comentário no meio estudantil de São Paulo, Chico Buarque de Holanda, Wilson Simonal e outros artistas vinculados ao setor radiofônico estariam articulando a realização de uma passeata, que aparentemente se relacionaria com o ‘Festival da Música Popular Brasileira’. Essa passeata, no entanto, propiciaria a infiltração de universitários que, ao seu final, apresentariam faixas e cartazes anunciando o encerramento do XXIX Congresso da UNE, burlando, dessa forma, a repressão policial. Segundo consta, ainda, o único que por enquanto manifestou-se contrário à idéia, foi o cantor Roberto Carlos, que colocou-se à margem dos entendimentos que nesse sentido estariam entabulados.



Nota: É de se notar que o referido festival foi inaugurado, há cerca de quinze dias, com uma concentração e posterior passeata, que se iniciou no Largo São Francisco com destino ao Teatro Record-Centro (Teatro Paramount). ‘SEP’, em 7-Ago-1967.( Documento 50-C-22-1647. Arquivo do DOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo).



O festival mencionado foi o III Festival de MPB da TV Record que, além de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré, contou com a presença de Roberto Carlos. Com o endurecimento do regime político e o A.I.5, os festivais foram sendo conquistados, pois, se a cultura é um campo de lutas, os festivais, em todos os seus espaços de atuação, também o eram.



Em 1970, Caetano e Gil ainda em Londres, Chico Buarque retorna ao Brasil, e o compacto com a música Apesar de Você é vetado pela censura. (Enquanto isso, o hino Pra Frente Brasil, de Miguel Gustavo, feito para a seleção brasileira de futebol que buscava a conquista do tri-campeonato mundial no México, alcançava enorme êxito popular).



Amanhã vai ser outro dia / Hoje você é quem manda / Falou, tá falado, não tem discussão, / A minha gente hoje anda falando de lado / E olhando pro chão, viu / Você que inventou esse estado / E inventou de inventar toda a escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu-se de inventar o perdão / Apesar de você, amanhã há de ser outro dia / E eu pergunto a você onde vai se esconder / Da enorme euforia / Como vai proibir / Quando o galo insistir em cantar / Água nova brotando, e a gente se amando sem parar / Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento vou cobrar com juros, juro! / Todo esse amor reprimido, esse grito contido / Esse samba no escuro / Você que inventou a tristeza / Ora, tenha a fineza de desinventar / Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada nesse meu penar / Apesar de você, amanhã há de ser outro dia / Ainda pago pra ver o jardim florescer / Qual você não queria / Você vai se amargar / Vendo o dia raiar / Sem lhe pedir licença / E eu vou morrer de ‘rir / E esse dia há de vir / Antes do que você pensa / Apesar de você, amanhã há de ser outro dia / Você vai ter que ver / A manhã renascer e esbanjar poesia / Como vai explicar / Vendo o céu clarear de repente, impunemente / Como vai abafar / Nosso povo a cantar na sua frente / Apesar de você, amanhã há de ser outro dia /

Você vai se dar mal, etc e tal … (Apesar de Você)



(HOLANDA, C. B. de. Chico Buarque (LP). Chico Buarque. Rio de Janeiro: Philips (6349398), 1978).



A gravação dessa música seria permitida somente em 1978, momento em que é revogado o A.I.5 e tem andamento o processo de anistia, permitindo o retorno de exilados. Nessa composição, Chico Buarque lança mão outra vez da metáfora do dia que virá. O autor começa com o diagnóstico sobre como é o dia de hoje. O sujeito da letra é indeterminado, mas tem endereço certo: “Hoje você é quem manda / Falou, tá falado, não tem discussão, não (…)“. Enquanto Apesar de Você era proibida, o V Festival Internacional da Canção da TV Globo premiava em primeiro lugar BR-3, de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, na interpretação de Tony Tornado.



A gente corre / E a gente corre na BR-3 / E a gente morre / E a gente morre na BR-3 / Há um foguete / Rasgando o céu, cruzando o espaço / E um Jesus Cristo feito em aço / Crucificado outra vez / Há um sonho / Viagem multicolorida / Às vezes ponto de partida / As vezes ponto de um talvez / Há um crime no longo asfalto dessa estrada / E uma notícia fabricada / Pro novo herói de cada mês / Na BR-3 Por isso eu morro na BR-3 / Por isso eu corro, corro / E tiro do vento na BR-3 / E novo vento na BR-3 / E o mundo se move na BR-3 / I love you baby, baby / Eu morro / Por isso tudo eu corro / Corro na BR-3… (ADOLFO, A. e GASPAR, T. / Sem referência de gravação).



A despolitização dos festivais, devido à repressão expressa na censura às canções e no exílio dos compositores, também contou com a participação da indústria cultural. Se os militares foram responsáveis pelos investimentos que garantiram um suporte tecnológico para o funcionamento de uma indústria cultural, no intuito de promover uma integração nacional — idéia central na ideologia da Segurança Nacional — e unificar politicamente as consciências, os empresários interessavam-se pela integração do mercado consumidor (ORTIZ, R. A Moderna Tradição Brasileira. Op. cit., p. 118).



Como a ideologia da Segurança Nacional é ‘moralista’ e a dos empresários, mercadológica, o ato repressor vai incidir sobre a especificidade do produto. Devemos, é claro, entender moralista no sentido amplo, de costumes, mas também político. Mas se tivermos em conta que a indústria cultural opera segundo um padrão de despolitização dos conteúdos, temos nesse nível, senão uma coincidência de perspectiva, pelo menos uma concordância. (Ibid., p. 119).



A censura é um artifício imanente às ditaduras e, no Brasil, foi o preço a ser pago até pelos empresários, já que o Estado controlado pelos militares era o principal incentivador do desenvolvimento capitalista. A busca de uma identidade nacional pelo Estado pelo viés da indústria cultural é reinterpretada em termos mercadológicos: a “nação integrada” é, antes, a interligação dos consumidores espalhados pelo país. Nesse sentido, o nacional identifica-se ao mercado.



Os festivais de MPB eram locais de resistência para público, compositores e intérpretes e também espaço para início da carreira destes; para os patrocinadores eram vitrinas em que exibiriam seus produtos. As músicas que se destacavam pelo conteúdo de denúncia sócio-política, conectando seus compositores à realidade, na lógica das gravadoras, eram vendidas como produtos no mercado.



Aproveitando-se do sucesso dos festivais, outros produtos eram ligados às músicas, às imagens contidas nas letras, aos instrumentos e aos próprios compositores e intérpretes. Para se ter uma idéia do alcance dos festivais — um dos principais produtos oferecidos pela televisão de então —, em 1959 o número de aparelhos em uso no Brasil era de 434 mil; em 1969 saltou para 4,36 milhões. Levando-se em conta que era comum a reunião de familiares, amigos e vizinhos em tomo de cada aparelho, o público receptor se multiplica.



Os festivais de MPB e suas músicas são apropriados como produtos retrabalhados e re-significados para vender outros produtos. É o caso da Petrobrás que, em 1969, lança uma campanha publicitária cujo mote é Aquele Abraço, aproveitando o título, a letra e as figuras da música de Gilberto Gil, feita às vésperas da partida do compositor para Londres.



Num momento em que o Estado e as multinacionais são os maiores investidores em publicidade, ironicamente o mesmo Estado que prende e depois expulsa do país, utiliza o trabalho de uma persona non grata para promover sua principal empresa. A lógica do mercado esvaziava, assim, qualquer intenção de politização na música.



O Rio de Janeiro continua lindo / O Rio de Janeiro continua sendo / O Rio de Janeiro, fevereiro e março / Alô, alô realengo / Aquele abraço / Alô torcida do Flamengo / Aquele abraço / Alô moça da favela / Aquele abraço / Todo mundo da Portela / Aquele abraço / Todo mês de fevereiro / Aquele passo / Alô banda de Ipanema / Aquele abraço / Meu caminho pelo mundo / Eu mesmo traço / A Bahia já me deu / Régua e compasso / Quem gosta de mim sou eu / Aquele abraço / Pra você que me esqueceu / Aquele abraço (…) Todo povo brasileiro / Aquele abraço (GIL, G. Á Arte de Gilberto Gil (LP Álbum). Gilberto Gil. São Paulo: Fontana (6470537), 1975).



Com o A.I.5, a atuação dos compositores fica restrita, pois o exílio e a censura prévia banem a possibilidade de apresentações e a participação em festivais. As agências de publicidade, vinculando refrões e imagens ligadas às composições, conseguem, pela ótica do mercado de consumo, a obediência que a ditadura não conseguiu com prisões e expurgos. Ao retrabalharem a canção numa linguagem, sobretudo visual, as agências descaracterizam-na, contribuindo para a despolitização das pessoas — tornados consurnidores —, anulando qualquer denúncia e colocando-a a seu serviço, estimulando vendas e, no caso das estatais, revertendo maiores lucros ao governo e fortalecendo-o.



(..) A produção de imagens fornece também uma ideologia dominante. A transformação social é substituída por uma transformação das imagens. A liberdade de consumir uma pluralidade de imagens e bens equivale à própria liberdade. A conota ção da liberdade de opção política em liberdade de consumo econômico exige a produção ilimitada e o consumo de imagens (SONTAG, S. “O Mundo-Imagem”. In Ensaios sobre a Fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981, p. 171).



Mesmo antes do A.I.5, essa relação entre festivais e patrocinadores já existia. Juca Chaves, tido como compositor talentoso, associou sua imagem a Abbey, o “whisky dos ‘experts’. Wilson Simonal, participante de vários festivais, até 1969 era garoto-propaganda da Esso; a partir daquele ano trocou o tigre da Esso pelo elefante da concorrente Shell (Revista Veja. São Paulo: Abril, ano II, n. 55, 24 de setembro de 1969, p. 58 e 59.)



Essa apropriação da música pela indústria de consumo, porém, não ficou restrita à MPB. As expressões e as figuras características da Jovem Guarda foram associadas a marcas de cigarros e à própria TV Record, responsável pelo programa dominical. Outra forma de associar um produto aos festivais era tê-lo utilizado pelos compositores e intérpretes. É o caso do violão, carregado de significados, pois representava a brasileira MPB em oposição às guitarras elétricas e instrumentos eletrônicos que abundavam no rock e no ié-ié-ié.



Com o sucesso dos festivais, as vendas de violão crescem consideravelmente, num primeiro momento devido à Bossa Nova e, depois, pelas interpretações marcantes de composições de Geraldo Vandré, Chico Buarque, Sérgio Ricardo e, no pré-tropicalismo, de Gilberto Gil e Caetano Veloso. É revelador o depoimento do presidente da empresa Di Giorgio, à época um estudante que engrossava o público dos festivais:



(…) A empresa… tinha uma linha diversificada de instrumentos, da qual a gente pode destacar cavaquinho, bandolins, viola, chegamos a fabricar até violinos, basicamente instrumentos de cordas acústicos. E após o advento da Bossa Nova e a era dos festivais, nós concentramos e passamos a fabricar somente violão … Nós conseguimos criar uma imagem forte com o violão em função dessa estrada que nós trilhamos, a partir dos anos 60… Construímos este edifício onde você está agora com o resultado dessa grande venda que teve na época… E nós passamos de uma produção, pra você ter uma idéia, de 50 violões/dia que nós fabricávamos pra 150 violões/dia… A somatória do advento dos festivais com a Bossa Nova foi um divisor de águas para a empresa… foi uma coisa muito importante na época.(…) (Depoimento de Reinaldo Di Giorgio Jr, em 31 de julho de 1997, em São Paulo).



No caso do violão, se a MPB e a Bossa Nova contribuíram para acelerar sua popularização e consumo, a indústria reforçou uma tradição musical: um instrumento vendido como produto de consumo, nas mãos do consumidor torna-se veículo de memória, constituindo-se numa outra fresta por onde a MPB poderia penetrar e manter-se em movimento — sendo cantada e participando das experiências do público.



Fonte: MPB em Movimento – música, festivais e censura – Ramon Casas Vilarino – Editora Olho D’Água.
4/12/2006

Entrevista com professor Ramon Casas Vilarino



A Reforma de Morales. Entrevista especial com Ramon Casas Vilarino

Ramon Casas Vilarino é doutor em ciências sociais. Sua tese de doutorado fala sobre o Brasil, a Bolívia e as questões que envolvem o petróleo. Em função desse conhecimento, a IHU On-Line entrevistou-o, por telefone. Nesta conversa, Vilarino analisa o primeiro ano do governo Morales, as relações da Bolívia e América Latina, prendendo-se nas questões que envolvem o Brasil, como a exploração de suas principais riquezas naturais.



Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como o senhor avalia o governo de Evo Morales nesse primeiro ano de mandato?

Ramon Casas Vilarino – O governo do Evo Morales já cumpriu duas promessas de campanha fundamentais: a primeira é a convocação de uma Assembléia Constituinte, que está rediscutindo a Bolívia. E a segunda foi a nacionalização dos hidrocarbonetos que gerou tensões recentes com o Brasil por causa da exploração da Petrobrás em território boliviano em torno do gás e do petróleo. No plano interno, com um caráter muito tímido, ele está tentando algumas reformas, como por exemplo a reforma agrária. Por esse caráter tímido, Morales está sendo muito criticado pelos movimentos sociais. No entanto, para um país que estava mergulhado em políticas neoliberais desde os anos 1980, a eleição de um indígena como Evo Morales, já é algo bastante radical para aquele país.



IHU On-Line – Logo que o resultado das eleições confirmou Morales como presidente, ele tratou de firmar parcerias com governos da América Latina e Caribe. Quais destas parcerias tiveram maior influência nesse primeiro ano do governo Morales?

Ramon Casas Vilarino – Certamente com Cuba e Venezuela. Álias, a pretensão de Morales é uma alternativa a esse capitalismo predominante na América Latina e, particularmente, na Bolívia. Então, nesse sentido ele faz parcerias com Cuba e Venezuela no sentido de se colocar como uma alternativa para esse capitalismo que está na sua fase mais liberal. Com relação ao Brasil, por exemplo, esse mal estar que houve com relação à Petrobras é uma coisa pontual, pois o Evo Morales entende que o Brasil é um parceiro importante para qualquer projeto de integração e transformação da América Latina. Ele tem, inclusive, muita admiração pelo presidente Lula, já disse várias vezes que se considera o irmão caçula de Lula. Agora, lutar contra a exploração histórica que a Bolívia vem sofrendo significa, para ele, lutar contra o tipo de exploração que a Petrobrás vem fazendo na Bolívia.



IHU On-Line – Como está a relação do Brasil e Bolívia na questão do gás natural?

Ramon Casas Vilarino – A questão da crise está praticamente assentada, porque a Petrobrás e o Governo Brasileiro aceitaram os termos da nacionalização dos hidrocarbonetos. A nacionalização do gás e do petróleo na Bolívia consistiu basicamente no seguinte: antes da nacionalização, a Petrobrás era a maior empresa na Bolívia, responsável por 15% do PIB boliviano e por ¼ da arrecadação fiscal. Essas empresas multinacionais pagavam 18% de impostos e ficavam com 82% da receita do petróleo e do gás. A nacionalização consistiu na inversão dessa relação, ou seja, 18% da receita ficam com as empresas e 82% com o Estado boliviano. A Petrobrás, pressionada por setores conservadores aqui do Brasil, tentou resistir e só assinou os novos acordos para exploração na Bolívia no último dia do prazo estipulado por Morales. E, ao contrário do que se divulgou antes, a direção da Petrobrás disse que o acordo foi vantajoso para a empresa, porque mesmo assim ela continuaria tendo lucro. Ou seja, com 18% da receita do gás e do petróleo a Petrobrás continua tendo lucro, imagina quanto ela ganhava antes quando ficava com 82%! Essa receita que fica agora com estado boliviano é uma receita que será utilizada para a implementação e desenvolvimento de algumas políticas públicas. Por exemplo, dia primeiro de maio, quando foi anunciada a nacionalização, o governo de Evo Morales anunciou um aumento no salário mínimo boliviano que estava congelado há alguns anos. Quer dizer que a nacionalização é pré condição para esse tipo de ação. Precisamos lembrar também que hoje o petróleo e o gás são hoje as únicas riquezas que a Bolívia têm para explorar, eles não são um país fortemente industrializado, não tem uma plataforma de exportação ampla e variada.



IHU On-Line – Quais são as principais políticas sociais que Morales tem desenvolvido?

Ramon Casas Vilarino – Evo Morales tem implementado agora uma espécie de Fome Zero boliviano, ou seja, é uma bolsa mínima concedida a famílias carentes na Bolívia para garantir pelo menos uma cesta básica, esse é um programa que até então não existia. Para isso, os recursos vêm exatamente da nacionalização dos hidrocarbonetos, com essa parcela maior que o Estado fica da receita do petróleo e do gás. Agora ele está promovendo também de maneira muito tímida, um programa de reforma agrária que alias está sendo bastante contestado no interior da Bolívia, pois não está mexendo com os grandes latifundiários.



IHU On-Line – Inclusive na semana passada os partidos de oposição que controlam o Congresso boliviano disseram que vão impedir o programa de reforma agrária...

Ramon Casas Vilarino – O problema dos partidos de oposição da Bolívia é que Evo Morales convocou a Constituinte com uma norma que diz o seguinte: Toda mudança substancial no estado Boliviano teria de ter dois terços dos votos dos parlamentares constituintes. Então, Morales tem tentado pressionar o Congresso para que essas mudanças na Constituinte sejam aprovadas por maioria simples, ou seja, 50% mais um voto e os partidos de oposição estão se colocando contrários a essa medida para que o Governo Evo Morales não faça sozinho as mudanças que quer na constituição boliviana. Para isso, os setores mais conservadores têm feito greves principalmente no departamento de Santa Cruz, a região menos pobre da Bolívia.



IHU On-Line – E quais são as mudanças que Evo Morales deseja fazer na Constituição? Quais afetariam a América Latina?

Ramon Casas Vilarino – Morales deseja que, com a mudança da Constituição, possa diminuir as desigualdades sociais e fazer a reforma agrária, que tem começado nas chamadas terras públicas. O medo dos constituintes e desses partidos de oposição é que essa reforma avance para o grande latifúndio e boa parte dos latifundiários estão bem representados no Congresso. Outra coisa: Com o medo de que sejam aumentados os impostos sobre grandes fortunas, em países miseráveis como a Bolívia, é possível notar poucas famílias com grandes fortunas, é o caso, por exemplo, do ex-presidente Gonçalo Sanchez de Losada, que renunciou em 2003, pressionado pelos movimentos populares, e acabou se exilando nos Estados Unidos. Esses setores estão bem representados no Congresso e por partidos de extrema direito. O partido que se encontra mais a esquerda é exatamente o MAS, que hoje responde pelo governo do país.



IHU On-Line – Como tem sido a relação do Presidente Morales com os Departamentos bolivianos?

Ramon Casas Vilarino – Na Bolívia há nove departamentos, que seriam a mesma coisa que estados. O principal departamento é o de Santa Cruz, onde está a capital Santa Cruz de La Sierra. Este departamento é o que mais tem atritos com o presidente, é ali que gira a maior parte da economia boliviana. Inclusive é nesse departamento onde estão instaladas as refinarias da Petrobrás. É de lá também que vem o gás que consumimos aqui no Brasil. Os atritos do governo têm é basicamente só com o governo de Santa Cruz. Santa cruz abriga ainda as pessoas mais ricas do país e é onde se concentra o temor da reforma agrária.



IHU On-Line – E como o senhor avalia a situação da fronteira do Brasil com a Bolívia?

Ramon Casas Vilarino – O principal mal estar que houve nesse primeiro ano do governo Evo Morales com o governo brasileiro foi no caso de um empresário que tentou construir uma indústria numa faixa que a constituição proíbe, pois dentro de 50 quilômetros do país, inclusive no Brasil, é proibido qualquer instalação de estrangeiros. Essa é uma região vulnerável, é como construir um cômodo da minha casa no terreno do vizinho, em pouco tempo eu levo a minha cerca para lá e tomo aquele pedaço de território. As constituições têm muito cuidado para que não ocorra esse tipo de coisa. No passado isso já ocorreu no Acre. O pretexto para o Brasil tomar o Acre em 1903 foi porque ele tinha mais brasileiros do que bolivianos e eles foram obrigados a acatar o Tratado de Petrópolis e o Acre foi anexado pelo Brasil. Então, hoje tem uma indústria, amanhã tem outra e depois quem vai garantir que a mesma situação não se repita? Os atritos na fronteira entre o Brasil e Bolívia se devem a esse passado histórico. Álias, a relação da Bolívia com seus países fronteiriços, tem sido uma história extremamente traumática para os bolivianos. Desde que ficou independente a Bolívia perdeu 56,5% dos seu território original, então ela tem razão em se preocupar com suas fronteiras. Dessa porcentagem a maior parte ficou com o Brasil.



IHU On-Line – Como está a relação da Bolívia e do Mercosul?

Ramon Casas Vilarino – Em principio, o Governo Lula tinha a intenção de atrair, como fez com a Venezuela, outros países para o Mercosul, para revigorá-lo e torná-lo mais forte. Até para se tornar uma alternativa concreta ao projeto de extensão do poderio norte americano na América Latina que era a Alca. No caso da Bolívia, havia a intenção de Evo Morales de se aproximar mais do governo brasileiro, só que nesse primeiro ano a questão da nacionalização dos hidrocarbonetos acabou pondo os dois países em mal estar que as negociações ficaram frias. As negociações devem ser retomadas no segundo governo Lula.



IHU On-Line – Morales é o primeiro descendente indígena a chegar à presidência da Bolívia. Em sua campanha defendeu o cultivo da coca pelos índios. Agora tem lutado contra o narcotráfico. Como o senhor analisa essa associação?

Ramon Casas Vilarino – Evo Morales separa a questão de uma forma cultural. A folha de coca na Bolívia é tradicionalmente usada como fonte medicinal, é muito comum ver pessoas mascando a folha de coca, principalmente nas ruas de La Paz. O chá de coca também é muito consumido. Evo Morales separa muito bem a questão do narcotráfico e a questão do cultivo da folha de coca. Porque as comunidades indígenas que produzem a folha de coca não produzem visando o narcotráfico. Ele está muito mais entranhado em setores organizados e poderosos da sociedade do que nas comunidades mais pobres. Os Estados Unidos são os maiores consumidores do mundo, ou seja, não são as comunidades pobres indígenas da Bolívia que são responsáveis pelo consumo de drogas no mundo. Os indígenas têm ainda hoje uma cultura de subsistência.



IHU On-Line – Como associar o governo brasileiro e o boliviano?

Ramon Casas Vilarino – Evo Morales é uma espécie de Lula boliviano. O que alguns setores da direita ainda não descobriram, como aqui no Brasil descobriram rapidamente, é que o Evo Morales não põe em risco o capitalismo boliviano, muito menos o da América Latina. No Brasil, se fez um alarde muito grande, Morales foi chamado de socialista, comunista, por causa da nacionalização dos hidrocarbonetos. Isso não é uma medida socialista ou põe em risco o capitalismo. Um exemplo novamente é a Reforma Agrária que ele está fazendo sem mexer com os grandes proprietários. Ele me disse, em entrevista, que as linhas de transformação da Bolívia vão acontecer via linhas institucionais e não revolucionárias, ele não quer fazer nada que não esteja previsto em lei.



IHU On-Line – Há algum país na América Latina em que o governo se assemelha ao da Bolívia? Por quê?

Ramon Casas Vilarino – Os grandes referenciais políticos do Evo Morales, segundo palavras dele mesmo são Hugo Chávez e Fidel Castro. Mas é Venezuela o país em que ele tenha se inspirado mais, pois Morales tem tentado fazer algo parecido com que Chávez está fazendo na Venezuela. Chávez não está fazendo revolução por lá, e sim transformações dentro da Constituição, que é o que Morales deseja. A Constituição na Venezuela foi modificada, inverteu também a proporção do petróleo, reforçou o papel da empresa estatal.



IHU On-Line – Setores brasileiros questionam a forma como Morales tem governado o país. Como o senhor analisa essa situação?

Ramon Casas Vilarino – Por ocasião da nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia, setores da grande imprensa bateram pesado no governo boliviano e no governo brasileiro, por não ter respondido a altura. É interessante que nesse ano de eleição aqui no Brasil, vimos na pauta a questão da ética, por causa dos vários escândalos do governo. Morales pode ter muitos defeitos, e certamente os têm, mas as críticas que nós fizemos aqui no Brasil a Evo Morales foram exatamente por ele ter cumprido de maneira ética as promessas de campanha. Pois, em 2003, Losada foi derrubado pela população por causa do acordo polêmico de gás boliviano aos norte americanos. Em 2005, Carlos Mesa foi derrubado porque se negou a cobrar 50% de impostos das empresas multinacionais. De maneira que, em 2005, a população, organizada em movimentos sociais, exigiu que o candidato a presidente se comprometesse com duas demandas fundamentais: nacionalização dos hidrocarbonetos e convocação de uma assembléia constituinte. Eleito, Morales convocou uma assembléia constituinte e nacionalizou os hidrocarbonetos.


fonte: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_entrevistas&Itemid=29&task=entrevista&id=2065