CULTURA
BRASILEIRA
TRADIÇÃO ORAL E MODERNIDADE
EM NARRADORES DE JAVÉ
TRADIÇÃO ORAL E MODERNIDADE
EM NARRADORES DE JAVÉ
Josilene
Batista da Silva
(UERJ)Evanete Lima
(UERJ)Rita de Cássia M.
Diogo (UERJ)
O
presente trabalho tem como objetivo o estudo da produção
cinematográfica latino-americana contemporânea a partir da
perspectiva dos estudos sobre tradução cultural. Para tanto,
deteremos nossa análise no filme de Eliane Caffé, intitulado
"Narradores de Javé", baseando-nos nos textos de Renato
Ortiz (ORTIZ, 2001) e na teoria de tradução de Walter Benjamin (in:
ANGEL VEGA, 1994).
Enquanto
nação pós-colonial, assim como os demais países da América
Latina, nós brasileiros vivenciamos até hoje uma profunda
assimetria cultural em relação ao chamado "mundo
desenvolvido", do qual continuamos a receber influências e,
muitas vezes, a copiar seus paradigmas. Uma assimetria que se
confirmará em relação ao cinema: ao longo de sua história, o
cinema brasileiro manteve-se numa silenciosa submissão à voz do
outro, sofrendo de uma auto-desvalorização e sendo devorado pelo
discurso alheio. Assim, quando o cinema sonoro chega à América
Latina, o Brasil, bem como a Argentina e o México, compartilharão
do mesmo modelo de desenvolvimento cinematográfico inspirado por
Hollywood.
Suzana
Lages (LAGES, 2002: 14-5), em análise sobre a tradução em Walter
Benjamin, parece refletir bem a situação da cinematografia
latino-americana na primeira metade do século XX: segundo a autora,
existe um tipo de tradutor que, na medida em que admira o original, a
autoridade do autor, se apaga, para dar vez e voz ao outro, ao
alheio, emudecendo o elemento autóctone. Somente a linguagem
vanguardista do Cinema Novo é que reverterá este quadro, ao
questionar a suposta superioridade do cinema estrangeiro: ao invés
de sentir-se um animal frente aos deuses, o bárbaro frente ao
civilizado, o coitado frente ao herói, cineastas como Glauber Rocha,
Carlos Diegues e Walter Lima vão influenciar, com o movimento de
descolonização cultural, outros cinemas emergentes do Terceiro
Mundo.
O
Cinema Novo representou a afirmação cultural do cinema brasileiro,
que passou a ser considerado como um dos mais revolucionários focos
de criação do cinema moderno. A partir desse momento, não haverá
mais espaço para a noção de tradução servil, que dará lugar a
uma prática tradutória agressiva, destruindo a aura do colonizador
cultural, aproximando-se do cerne do conceito de antropofagia segundo
Oswald de Andrade: assimilar o que é estrangeiro, transformar o
alheio em substância própria e valorizar o que é nativo e
primitivo, em outras palavras: igualar-se.
Em
entrevista no ano de 2003, Carlos Diegues (http:
//cinema.terra.com.br) declarou que, depois de anos de difícil
sobrevivência, os novos diretores de cinema do Brasil e Argentina
compartilham a busca por recuperar as identidades locais frente à
hegemonia do cinema proveniente dos Estados Unidos. Cabe inserir
nesse contexto um modo de produção que retrata não uma realidade
monológica, mas a pluralidade das culturas, que constrói, ou tenta
construir um discurso de identidade associado à questão da
linguagem popular reinventada, criando um realismo dentro de uma
perspectiva crítica. Esse "realismo reflexivo", estético
e pluralista conforme enfatiza Ortiz (ORTIZ, 2001: 172-3), propõe a
manifestação de um distanciamento crítico do espectador, levando-o
à reflexão sobre o que vê e ouve, contrapondo-se assim, ao
"realismo reflexo", cuja univocidade voltada para atender
às exigências da indústria cultural, mostra-se incompatível com
as propostas revolucionárias dos cineastas do Cinema Novo.
A
construção do discurso da identidade, livre da servidão ao
discurso alheio, evidencia que muitos de nossos cineastas se
posicionam hoje na travessia entre o "realismo reflexo" e o
"realismo reflexivo", tal como podemos observar no filme de
Eliane Caffé. Em "Narradores de Javé", a cineasta
brasileira traduz, do ponto de vista pluricultural e sob vários
ângulos (cada morador é um narrador), a história de um povoado que
tenta resgatar a memória do sertão baiano. Tomando o povoado de
Javé como uma metáfora do Brasil, temos por verdadeiras as palavras
de Diegues (IbId.),
quando afirma que o cinema segue buscando a identidade do povo
brasileiro, encarnada neste filme pela diversidade de vozes que
conformam a nossa cultura: um mosaico de diferentes cores, raças,
gêneros e religiões.
“Narradores
de Javé” marca a luta de um povo, os moradores do Vale de Javé,
no sertão baiano, na tentativa de reconstituir sua história
perpetuada através da oralidade, buscando garantir sua existência
no futuro, que se encontra ameaçado pela Modernidade: a construção
de uma represa que fará o povoado desaparecer em suas águas.
A
saída apontada pelo Estado para uma possível preservação do
povoado seria a de ele possuir algum monumento ou patrimônio
histórico que justificasse seu tombamento, certamente pressupondo
sua inexistência. De qualquer forma, esta idéia está associada à
ideologia governamental que prega a preservação da tradição, da
memória popular encarnada numa visão folclórica de busca de
identidade cultural e nacional. (ORTIZ, 2001: 163)
Diante
desse posicionamento, o povo de Javé resolve encarregar o antigo
responsável pela Agência de Correios do povoado - ele era o único
alfabetizado do lugar -para ouvir o relato dos moradores e a partir
deles, escrever a história do povo do Vale de Javé.
Ao
pensar sobre esta proposta, percebemos a supremacia da cultura
letrada sobre a cultura popular de base oral. O discurso oficial
releva a tradição oral do povo, que só seria reconhecida no
momento em que passasse a fazer parte do registro legitimado pela
sociedade moderna: o registro escrito. Essa visão preconceituosa e
elitista, que considera a cultura letrada superior à oral também
marca a presença de um discurso de dominação socioeconômico que
nos acompanha desde a época colonial: não podemos nos esquecer que
a colonização da América Latina teve como conseqüência o
extermínio dos povos indígenas, seguido pelo total desprezo por sua
produção cultural, já que para a mentalidade européia, só o
registro escrito dava legitimidade e autoridade à história e à
cultura de um povo.
No
filme em estudo, uma população analfabeta é expulsa de suas terras
e vê todo o seu passado destruído, tendo como justificativa a
necessidade de um progresso inevitável que beneficiará "um
grande número de pessoas", no qual os moradores de Javé não
estão incluídos. Também serve como argumento o fato de “não
possuírem” uma herança cultural, já que sua história e
existência não haviam sido registradas formalmente. Portanto, não
possuíam sua cidadania reconhecida, eram cidadãos de segunda classe
que não faziam parte de nenhuma estatística, ou seja, não
existiam.
Subjacente
ao discurso oficial, o que vemos é a visão de uma identidade
brasileira que está fragmentada em pares opositivos: civilização x
barbárie, tradição oral x tradição escrita, ao invés de estar
marcada pela complementaridade. Esta, por sua vez, só será possível
quando houver uma tomada de consciência de que mesmo a modernidade
sendo inexorável, é imprescindível que a sociedade assuma as suas
diferentes manifestações culturais a fim de não comprometer a
diversidade, elemento fundamental da identidade brasileira e
latino-americana.
O
povo de Javé passa então a registrar a sua identidade histórica e
cultural, ao relatar ao carteiro da região aquilo que lhes havia
sido passado de geração em geração: a saga de seu fundador,
Indalécio, no desbravamento do sertão baiano, a fim de fundar um
povoado para os seus seguidores. Fato que, ao ser transmitido à
posteridade, vai se distanciando cada vez mais do “original”;
além disso, ele será permeado pela visão pessoal dos moradores, os
quais vão traduzindo-o segundo o seu olhar, sua formação
sociocultural e religiosa.
Partindo-se
do princípio de que tudo o que se vive, ouve ou vê, passa por um
processo interno de releitura e reconstrução conforme o modo de ser
e de pensar de cada um, bem como de acordo com a bagagem
histórico-cultural que adquirimos no decorrer da vida, podemos dizer
que todo ser humano é um tradutor. Assim, ao contar uma cena que
presenciamos, esta terá a nossa versão pessoal, não será mais a
cena original, mas a sua tradução. Porém, sabemos que o sentido
primitivo estará sempre presente em nossas traduções, pois, caso
contrário, não seriam traduções e sim ficções, invenções, e
perderiam o elo de ligação com o original.
No
momento em que todos são narradores/tradutores, temos diversas
narrativas relatando o mesmo acontecimento. Há divergências no modo
de contar, porém o sentido original, o fio condutor da história, é
preservado. É como se a história tivesse se fragmentado em diversas
partes, que ao invés de se excluírem, passam a se complementar
entre si, de modo que o escritor responsável pela reconstituição
da história do Vale de Javé se vê obrigado a juntá-las para
chegar a um todo harmônico. No entanto, esta tarefa revela-se
impossível, além dos mais, desinteressante, pois é justamente esta
diversidade de traduções que conforma a verdadeira identidade de um
povo, ou seja, o seu caráter híbrido. O escritor, que por sua vez é
também tradutor de todas essas narrativas, sente-se impotente diante
de uma tarefa tão complexa e grandiosa. Na verdade, como resolver o
dilema de traduzir uma narrativa oral que esteve sempre em movimento,
viva na boca dos moradores do vilarejo, para um registro escrito,
que, como tal é estático e imutável, e que, acima de tudo, só
permite uma versão que é única e definitiva?
Com
o carteiro-tradutor, os moradores de Javé sucumbem à Modernidade
que não foi capaz de respeitar a diversidade cultural que faz parte
do nosso universo. Esta não é vista em sua imensa riqueza e em seu
potencial de complementaridade, é sim enquadrada sob o ponto de
vista da classe dominante e, portanto, classificada como inferior.
“Para o bem de todos”, a pluralidade deve ser superada e
substituída pelo “Mesmo”, demonstrando, como vemos no filme, uma
total falta de sensibilidade para com os valores alheios. Não há a
possibilidade da mescla ou da convivência harmoniosa, o que resta é
a adaptação ou a aniquilação total, de modo que o “bárbaro”
para atingir a civilização tem que renunciar à sua herança
cultural e assimilar acriticamente os valores impostos pelo elemento
dominador. Assim, a população de Javé tenta escrever sua história
para se ajustar a uma Modernidade, a qual não pertence, já que,
neste caso, a diferença é vista como sinal de atraso e é usada
para legitimar o seu aniquilamento. Como não conseguem atender às
exigências do progresso e da civilização, desaparecem como
palavras ao vento.
Ainda
que haja no mercado uma demanda por filmes em que a realidade é
tratada de forma reflexa, na qual, segundo Ortiz, se reforçam as
demandas e exigências do espectador (Ibid:
173), Eliane Caffé confronta o seu público com uma realidade,
diante da qual este não tem como ficar passivo, sendo levado a
posicionar-se frente à situação retratada. Ao desenhar na tela uma
realidade brasileira que mostra as diversas faces formadoras da
sociedade, dando voz às etnias, religiões e classes excluídas, a
diretora retoma o posicionamento crítico-reflexivo colocado em
marcha pelos adeptos do Cinema Novo.
O
filme “Narradores de Javé” sinaliza um importante momento de
retomada e reencontro do nosso cinema com as diversas formas de
expressão da cultura brasileira, nos permitindo entrar em contato
com o Brasil de todos os brasileiros.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN,
Walter. La tarea del traductor. In: ANGEL VEGA, M. (org.) Textos
clásicos de teoría de la traducción.
Madrid: Cátedra, 1994. p. 285-296.
DIEGUES,
Carlos. Disponível em: http:
//cinema.terra.com.br.
Acesso: setembro, 2004.
LAGES,
Suzana Kampft. Walter
Benjamin: Tradução e
melancolia. São Paulo: Edusp, 2002.
ORTIZ,
Renato. A moderna tradição
brasileira: cultura
brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2001.
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